só ainda li umas dez páginas

e já lamento que o livro não seja meu para poder rabiscá-lo, sublinhar, anotar.

- Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos.
- É uma grande tristeza — disse ela a soluçar.
- É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés. 


Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças

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