#FightMentalHealthStigma

um amigo facebookiano escreveu um post sobre o Célio Dias e... bem, mais vale ler: 
O Célio combinava 3 coisas que o colocavam como underdog da vida: negro (em portugal), de origens muito humildes e homossexual. Junta-se-lhe outro estigma agora, o da doença mental. Todas estas coisas revelou numa simplicidade desarmante. O percurso de vida feito de uma luta extrema: aluno aplicado, atleta de topo, modelo. O discurso e a sua escrita é extremamente lúcido. E não digo que é articulado e lúcido para alguém com um distúrbio em tom condescendente: digo que é articulado e lúcido comparado com 99.9% das pessoas a falar para estranhos sobre si própria. Aborda temas como as lutas pessoais, as ambições, a forma como nos projectamos na sociedade, as máscaras que temos, a hipocrisia, as adversidades, a derrota, os projectos de responsabilidade social etc. Quando ouvi a história na primeira pessoa só pensei que era incrível se todos a conhecessem e fico feliz por ter dado a entrevista (no jornal Record).
depois das revoluções (ainda em curso) das questões raciais e das de igualdade de género, é esta que espero: o combate ao estigma das doenças mentais. do cardápio disponível, coube-me ter uma (basta dizer que tenho uma doença mental, sem querer dizer qual porque ainda não é a mesma coisa dizer que tenho diabetes e eu não sou assim tão corajosa como o Célio).

estou medicada para amortecer os sintomas. podia estar menos medicada se conseguisse ter um estilo de vida mais saudável, como por ex. fazer exercício físico à séria. podia estar mais medicada se não levasse isto a sério, procurado ajuda especializada, fazer psicoterapia e perceber que ainda que seja uma luta constante já não é o que me define os dias.

tive sorte. apesar de tudo a minha doença é uma menina, mesmo que pouco meiga, é uma menina. conheço os seus familiares mais velhos, duros e incapacitantes. sei que o limiar de uma coisa maior é assustadoramente ténue, daí o respect, my little girl.

passaram-se mais de vinte anos desde que tive os primeiros sintomas (do que me lembro) até ser diagnosticada. o dia em que soube foi de enorme alívio: havia algo em concreto que pudesse perceber e trabalhar. deixando para trás uma sucessão de episódios infelizes, severos e violentos, que não compreendia e não sabia como lidar.

por ora é mais fácil escrever por aqui, com um público de seis leitores. creio que nunca chegará o dia em que fale abertamente disto (como outros falam dos seus diabetes, das suas cardiopatias, da osteoporose, de uma dor de dentes). hélas, duplicam o seu peso: na mente e na sociedade, com batalhas em ambas.
(and stop again)

With your feet in the air and your head on the ground
Try this trick and spin it, yeah
Your head will collapse
But there's nothing in it
And you'll ask yourself


Where is my mind?


(with my feet on the ground and my head in the air)

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deve estar a fazer uns trinta anos em que foi lançada e continua a ser óptima para ser servida com o pequeno-almoço.




(a escolha dela no soundtrack do Fight Club não foi inocente)

se por estes dias só tiverem tempo para ver um filme que seja o Florida Project

aqueles putos... dava um oscar a cada um. são tão genuínos, criativos, resilientes e vivos. dava outro oscar ao Sean Baker, por mais uma vez nos trazer uma obra tão realista, sem recorrer ao drama excessivo, deixando que as histórias se contem por si.


 


[r.nashe]

mas

mas é pai. e pai é pai.
mas é mãe. e mãe é mãe.

nestas afirmações parece estar contido que todo o nascer de é ser cuidado por. naturalmente inerente ao processo de criação, o desvelo. com sorte, altruísta. mas só encerram em si o desejo que assim seja. que no prolongamento das palavras se torne verdade, que a vida seja harmoniosa em família. e uma confrontação que a semântica sem magia pode ser profundamente dolorosa. pai, não é pai e mãe, não é mãe. esquecendo a biologia, mas a relembrar que precisamos de identidade, de raízes. que nos construímos também com essas referências. e se elas existem completamente deformadas?

o meu pai é a pessoa de quem menos gosto na família. há mágoa, assim como há desejo que mude (como as compreendo). há, também, alguma aceitação por soma de tantas desilusões. à mãe, neste caso, cabe-lhe ser a mãe é mãe, no seu todo, ainda que ela própria também ande à procura da sua identidade e questionando quantas vezes conseguimos criar novas raízes e firmar porto seguro?




quase todas as manhãs, a caminho do trabalho, cruzo-me com uma senhora dos seus setenta anos. cara simpática e doce, cabelo arranjado, costas direitas, roupa colorida e o seu carrinho de compras. àquela hora já vem da praça, levando consigo legumes e frutas frescas da época que utilizará nas refeições do dia, sem precisar de guardar nada no frigorífico. imagino-a a cozinhar com prazer, sem a urgência de horários a cumprir que não seja o da sua ida diária à praça. imagino-a. nunca troquei uma palavra com ela, não sei como se chama, não sei onde vive, com quem vive, como vive. quem sabe quando entra por casa encontra o tormento e a ida à praça seja a sua pausa. ou a sua obrigação ditada por outros. não o creio pelo ar que tem. mas é o meu olhar, que pode ser apenas nada.

numa semana soube de duas histórias cruéis sobre duas crianças de seis anos, com as quais também me cruzo quase todos os dias.vejo-as uns dias aos saltos, outros dias em birra, outros dias com sono, outros dias. a uma delas foi dada à custódia total à mãe depois de se descobrir que o pai via pornografia e se masturbava à frente dela. a outra levou um enxerto de porrada da mãe, que incluiu ser pontapeada, num fim de tarde à porta da escola.

hoje conheci uma mulher que dormia - salvo seja - com um burgesso e a ameaça de uma arma. ali na almofada ao lado.

garanto que não ando à procura destas histórias. chegam-me aos ouvidos sem aviso e deixam-me cada vez mais sem capacidade de articular grande coisa. a dimensão de conhecer as  pessoas - estas pessoas -, de serem mais do que acontecimentos lidos ou ouvidos de alguém que conhece alguém, que conhece alguém, longínquo o suficiente para não criar uma ligação tão estreita.

preciso estar mais atenta com quem me cruzo sem conhecer e sem querer conhecer. um certo paliativo para intervalar o que conheço.

hoje voltei a sentir-me muito cansada.
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deixei a minha mais nova adormecer no sofá. agora mesmo, está deitada ao meu lado no sofá, num sono tranquilo. a mais velha está na cama dela, talvez tenha adormecido outra vez com um livro que acaba por deixar cair e amanhã vá novamente refilar porque não marcou a página. vou lá dar-lhe um beijo daqui a pouco.

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na segunda-feira talvez tente fotografar a minha velhota do carrinho de compras.
na segunda-feita talvez contacte a cpcj.
até segunda-feira não quero que me contem mais histórias. só as estórias da viagem à lua da minha mais nova e as bds de colagens da minha mais velha. ali pelo meio talvez encaixe um filme de ficção científica, do espaço e mais além, com naves intergaláticas, os bons e os maus, os assim-assim, talvez uma princesa-heroína.
but if I fall?
but if you fly?
but if I fall?

if you fall I'll be there
— the ground



a six-part series about becoming a mother




vi há pouco tempo estes vídeos, que deixaram alguns ecos. o maior é o espaço necessário para cada um de nós e a nossa definição, sem invasões que criem ruído naquilo que muitas vezes é já titânico. por outro lado, conhecer histórias que se assemelham, por pouco ou muito que seja, às nossas conforta-nos e afasta uma certa solidão que se sente nas nossas escolhas e consequências.