quase todas as manhãs, a caminho do trabalho, cruzo-me com uma senhora dos seus setenta anos. cara simpática e doce, cabelo arranjado, costas direitas, roupa colorida e o seu carrinho de compras. àquela hora já vem da praça, levando consigo legumes e frutas frescas da época que utilizará nas refeições do dia, sem precisar de guardar nada no frigorífico. imagino-a a cozinhar com prazer, sem a urgência de horários a cumprir que não seja o da sua ida diária à praça. imagino-a. nunca troquei uma palavra com ela, não sei como se chama, não sei onde vive, com quem vive, como vive. quem sabe quando entra por casa encontra o tormento e a ida à praça seja a sua pausa. ou a sua obrigação ditada por outros. não o creio pelo ar que tem. mas é o meu olhar, que pode ser apenas nada.

numa semana soube de duas histórias cruéis sobre duas crianças de seis anos, com as quais também me cruzo quase todos os dias.vejo-as uns dias aos saltos, outros dias em birra, outros dias com sono, outros dias. a uma delas foi dada à custódia total à mãe depois de se descobrir que o pai via pornografia e se masturbava à frente dela. a outra levou um enxerto de porrada da mãe, que incluiu ser pontapeada, num fim de tarde à porta da escola.

hoje conheci uma mulher que dormia - salvo seja - com um burgesso e a ameaça de uma arma. ali na almofada ao lado.

garanto que não ando à procura destas histórias. chegam-me aos ouvidos sem aviso e deixam-me cada vez mais sem capacidade de articular grande coisa. a dimensão de conhecer as  pessoas - estas pessoas -, de serem mais do que acontecimentos lidos ou ouvidos de alguém que conhece alguém, que conhece alguém, longínquo o suficiente para não criar uma ligação tão estreita.

preciso estar mais atenta com quem me cruzo sem conhecer e sem querer conhecer. um certo paliativo para intervalar o que conheço.

hoje voltei a sentir-me muito cansada.
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deixei a minha mais nova adormecer no sofá. agora mesmo, está deitada ao meu lado no sofá, num sono tranquilo. a mais velha está na cama dela, talvez tenha adormecido outra vez com um livro que acaba por deixar cair e amanhã vá novamente refilar porque não marcou a página. vou lá dar-lhe um beijo daqui a pouco.

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na segunda-feira talvez tente fotografar a minha velhota do carrinho de compras.
na segunda-feita talvez contacte a cpcj.
até segunda-feira não quero que me contem mais histórias. só as estórias da viagem à lua da minha mais nova e as bds de colagens da minha mais velha. ali pelo meio talvez encaixe um filme de ficção científica, do espaço e mais além, com naves intergaláticas, os bons e os maus, os assim-assim, talvez uma princesa-heroína.

4 comentários:

  1. tenho de ler este texto com calma. hoje não me apetece. sorry. :)

    ando à procura de um novo emprego.

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    1. não tens de ler, não :)

      boa sorte na procura de emprego*

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