temos de ter aquela conversa

nada nos prepara realmente para as conversas sobre a vida (ou a falta dela) com os nossos filhos. pelos menos enquanto são pequenos. bah, pequenos porque subestimamos a sua capacidade de observar o mundo. eu não imaginava que naqueles dois recreios — um com miúdos de pouco mais de uma dezena de anos de vida, outro com menos ainda — havia tantos desabafos do tamanho de adultos. não só das minhas, os delas misturados com muitos dos outros.

a B. com a mãe internada há mais de um ano, o pai com a cabeça queimada, funcional a meio tempo (com sorte). a M. que leva porrada dia-sim-dia-sim da mãe. a I. que deixa de dormir sempre que o pai se vai embora para outro país, ganhar o que aqui não consegue. a L. que não sabe explicar bem, mas sente que a mãe anda triste, diferente (é um tumor na cabeça). o Z. que se levanta às seis da manhã para ajudar os pais e não são as actividades extracurriculares que o deixam demasiado cansado para estar atento às aulas da tarde. o L. que só fala de sexo. a inveja que muitos têm da L. porque é sempre bem-disposta e tem pai e mãe para a irem buscar à escola. o C. que ainda faz xixi na cama. (...)

não adianta estar com rodeios. estes miúdos vivem como gente grande, pack todo incluído. dizer que a diferença é ainda não terem maturidade para gerirem emocionalmente tanto caos, é meia verdade. eles crescem o que precisam, sem a vantagem de poderem ir para os copos para esquecer. eu deixo o canal de comunicação aberto, sem julgar — foi o meio mais eficaz que encontrei para as ajudar —, falem comigo. e falam. depois falei eu. sobre a ajuda dos amigos, que o aquilo que fazem nesses recreios é fabuloso: uns falam, alguns ouvem. esses que deixam de ir jogar para estar quase uma hora a ouvir a amiga que tem os pais quase desaparecidos. têm seis, sete anos e sabem estar presentes. sabem, também, quando é o momento para irem descomprimir e passam a ser os miúdos que jogam ao quinze, se riem e se zangam por algum ter feito batota.

pela dimensão do que me chegou, tive de lhes explicar algumas coisas sobre auto-mutilação, os depressivos funcionais, o suicídio. da regra de ouro: ouvirem e depois pedirem — sempre — ajuda a um adulto com quem se sintam à vontade ou aconselhar o outro a fazê-lo.

depois bebemos as três um copo de leite achocolatado enquanto escolhíamos as roupas para vestir hoje e elas iam contando anedotas. tentar perceber como é que o Camões perdeu um olho: deixou-o cair e não o encontrou porque via mal? é demasiado humor negro? não, até porque nos rimos muito à conta disso.

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