desabafo

a vida corre bem. quase tudo bem. um quase que não é trágico, é apenas a minha vida a ser extremamente comum e o faltar sempre qualquer coisa ser o normal das vidas.

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[dêem-me uns dias sozinha e garanto que afundo. nada de novo, portanto]

desafio

ouvir esta música e não sentir um ligeiro nó na garganta — mesmo que a vida esteja naquela coisa do corre bem (corre?).


quarta-feira, 22 de agosto. é importante referir o dia da semana e não apenas a data, servindo de dose dupla de choque para o regresso a qualquer coisa que se tornou mais pequena: a minha rotina, o meu trabalho, deixaram de ser tão grandemente terapêuticos. mantém-se a necessidade financeira, bem como o gosto destas coisas do design mas a minha vida está mais cheia — de tão bom, que troquei a equação: mais é menos. mais completa, menos complicada.

ainda sob esse choque de regresso ao trabalho a meio da semana, com tudo em férias e sem conseguir sentir o cheiro habitual da rentrée: falta o outono, o cheiro a livros novos, a ânsia dos primeiros dias de escola das miúdas, a esplanada ao fim do dia com o gangue todo a dizermos disparates.

recorro a um método com anos de método científico aplicado e estatística a provar a eficácia: música a bombar e aguardo, sabendo que mais hora menos hora os neurónios estarão a bom ritmo para terminar este dia com trabalho feito.


poderiam ser percas, que o peixe saberia bem melhor


as previsões indicam que a partir de amanhã as temperatura podem chegar aos 45º. o que são mais 15º do máximo suportável pela minha pessoa. já verifiquei se o ac da sala ainda funciona e tenho minis no frigorífico. ou seja, tenho planos para sobreviver aos 15º acima do suportável.

não tenho é planos para sobreviver às perdas constantes. com o tempo verifica-se que a vida é mesmo uma sucessão de perdas e deixar de ter planos para o suportar é o grande passo evolutivo. aceitar e resistir aos falhanços, às frustrações, ao que não controlamos, ao que desejamos e que se dilui, às pessoas vivas que perdemos (impossível falar das outras) e, ainda assim, aquela hora na esplanada ao fim do dia com os amigos, o jantar com as nossas filhas, o beijo temporário que nos tira o fôlego, a caminhada sozinha e o perder-me em ruas que julgava conhecer, ser o melhor que a vida tem. por hoje. amanhã, logo se vê. em todo o caso tenho minis no frigorífico.


se beber, não choro?

o primeiro livro que tenho memória de ter lido era acerca de um mocho que recolhia as suas lágrimas para fazer um chá. para tal, rebuscava nas suas recordações situações tristes para provocar o choro. pois sim, e é o mocho símbolo de sabedoria... não lembro como terminava, mas suspeito que tenho ficado envenenado depois de beber o chá.

desses tempos (em que era chic e lia em francês com mais fluência do que em português) ainda recordo outro: La Sœur de Gribouille. tanto drama que não sei como não cortei os pulsos. bonito, bonito, é o que o reli várias vezes.

de facto, agora os tempos são outros, o existencialismo duro é mercantilizado criativamente e à mão de rodar uma tampa. fast suffering?


higiene emocional

[os conteúdos que se seguem podem ferir a sensibilidade dos leitores] 


To love at all is to be vulnerable. Love anything and your heart will be wrung and possibly broken. If you want to make sure of keeping it intact you must give it to no one, not even an animal. Wrap it carefully round with hobbies and little luxuries; avoid all entanglements. Lock it up safe in the casket or coffin of your selfishness. But in that casket, safe, dark, motionless, airless, it will change. It will not be broken; it will become unbreakable, impenetrable, irredeemable. To love is to be vulnerable.
― C.S. Lewis, The Four Loves


 

temos de ter aquela conversa

nada nos prepara realmente para as conversas sobre a vida (ou a falta dela) com os nossos filhos. pelos menos enquanto são pequenos. bah, pequenos porque subestimamos a sua capacidade de observar o mundo. eu não imaginava que naqueles dois recreios — um com miúdos de pouco mais de uma dezena de anos de vida, outro com menos ainda — havia tantos desabafos do tamanho de adultos. não só das minhas, os delas misturados com muitos dos outros.

a B. com a mãe internada há mais de um ano, o pai com a cabeça queimada, funcional a meio tempo (com sorte). a M. que leva porrada dia-sim-dia-sim da mãe. a I. que deixa de dormir sempre que o pai se vai embora para outro país, ganhar o que aqui não consegue. a L. que não sabe explicar bem, mas sente que a mãe anda triste, diferente (é um tumor na cabeça). o Z. que se levanta às seis da manhã para ajudar os pais e não são as actividades extracurriculares que o deixam demasiado cansado para estar atento às aulas da tarde. o L. que só fala de sexo. a inveja que muitos têm da L. porque é sempre bem-disposta e tem pai e mãe para a irem buscar à escola. o C. que ainda faz xixi na cama. (...)

não adianta estar com rodeios. estes miúdos vivem como gente grande, pack todo incluído. dizer que a diferença é ainda não terem maturidade para gerirem emocionalmente tanto caos, é meia verdade. eles crescem o que precisam, sem a vantagem de poderem ir para os copos para esquecer. eu deixo o canal de comunicação aberto, sem julgar — foi o meio mais eficaz que encontrei para as ajudar —, falem comigo. e falam. depois falei eu. sobre a ajuda dos amigos, que o aquilo que fazem nesses recreios é fabuloso: uns falam, alguns ouvem. esses que deixam de ir jogar para estar quase uma hora a ouvir a amiga que tem os pais quase desaparecidos. têm seis, sete anos e sabem estar presentes. sabem, também, quando é o momento para irem descomprimir e passam a ser os miúdos que jogam ao quinze, se riem e se zangam por algum ter feito batota.

pela dimensão do que me chegou, tive de lhes explicar algumas coisas sobre auto-mutilação, os depressivos funcionais, o suicídio. da regra de ouro: ouvirem e depois pedirem — sempre — ajuda a um adulto com quem se sintam à vontade ou aconselhar o outro a fazê-lo.

depois bebemos as três um copo de leite achocolatado enquanto escolhíamos as roupas para vestir hoje e elas iam contando anedotas. tentar perceber como é que o Camões perdeu um olho: deixou-o cair e não o encontrou porque via mal? é demasiado humor negro? não, até porque nos rimos muito à conta disso.